sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

Crime e Castigo

"No hay perdón para los actos de odio. El puñal que se clava en nombre de la libertad, se clava en el pecho de la libertad”. José Martí"

Na tragédia Antígona, do dramaturgo grego Sófocles (496 a.C.–406 a.C.), a protagonista homônima se vê diante de um óbice: deseja enterrar o corpo de seu irmão Polinices, tido como traidor da cidade de Tebas, mas é impedida pelo rei Creonte, que se nega a lhe conceder as exéquias e a condena à morte. O pano de fundo em que se desenrola a história é o embate entre os direitos natural e positivo, a contenda entre o costume divino, oral e não-escrito, a diké (que encontra correspondência no termo latino justitia, e qualquer semelhança com o vocábulo português justiça não será mera coincidência), e a lei humana, escrita e urbana, a nómos. Representa o choque entre dois mundos, a passagem entre duas cosmologias: a transição entre o mundo homérico do génos, dos clãs que dominavam a Grécia antiga, e o mundo político da cidade-Estado helênica, a pólis.
Feito o intróito, milhares de anos se passaram e o enredo assume uma versão atual, com personagens bem tupiniquins. Fomos acossados, nessas últimas semanas, pelo espectro de uma suposta revisão da famigerada Lei da Anistia, “promulgada” em plena vigência da ditadura militar. Responsável pelo retorno dos exilados políticos brasileiros, tanto civis como militares de esquerda, e pela impressão de uma abertura democrática “lenta, gradual e segura”, a Lei no 6.683 de 28 de agosto de 1979 pregava que todos os crimes cometidos por motivação política entre 1961 e aquele ano – excetuando-se os de seqüestro, terrorismo, etc. – seriam, a partir de então, anistiados. Inacreditavelmente, os crimes perpetrados pelos carrascos do governo autoritário também seriam perdoados. Fez-se então um só peso e uma só medida: vítima e algoz seriam absolvidos; torturado e torturador ficariam em pé de igualdade.
O mundo certamente seria um lugar melhor sem essas duas curiosas personagens, como mais fácil seria arrebanhá-los num só plantel. À época de sua negociação, coisas aparentemente imiscíveis foram reduzidas ao mesmo estatuto: o pau-de-arara, por ironia, passou a valer o mesmo que uma passeata estudantil; sessões de choque adquiriram o mesmo valor de barricadas ou de canções de protesto. Em verdade, era muito fácil divisar o panorama que se deslindava: uma casta dominante que usa de sua hegemonia cultural e ideologia como ferramenta de inversão da realidade, cientistas políticos e jurídicos obsoletos, um sem-número de militares cujas mãos rubras de sangue silenciaram o direito de um povo de erigir um Estado democrático de Direito.
Assim, diante dessa ignomínia, foi preciso que o juiz espanhol Baltasar Garzón, responsável pela prisão de diversos ditadores latino-americanos, entre eles o chileno Augusto Pinochet, viesse ao Brasil para reiterar que crimes de lesa-humanidade, em cujo rol as atrocidades cometidas pelo governo de exceção entre as décadas de 60 e 70 perfeitamente se encaixam, não merecem a honra da anistia. Temos, assim, a impressão de que os assuntos internos de nosso país sempre sofrem a ingerência de outros povos, de que somos alheios ao nosso destino e despojados de nossa própria terra, que não temos autonomia em nossas próprias decisões. Essa sensação de alienação é, de certa forma, sustentada por duas situações: o fato de outros países que viveram sob governos despóticos entrarem em um processo de revisão de seu passado. Chile e Argentina, por exemplo, vêm julgando os responsáveis por crimes de tortura e assassinatos realizados por regimes militares em seus países; a outra é um elemento que parece ser constitutivo do “espírito” brasileiro: a passividade, em contraposição ao pacifismo. A primeira chafurda na inércia, no conformismo, conditio sine qua non da violência; o último se sustenta pela ação e pelo poder de mobilização. Esse caráter estático presente na vida nacional aparentemente é fomentado pela ala majoritária do atual governo, do qual poucas vozes dissonantes se destacam. Entre elas está a dos ministros da Justiça, Tarso Genro, e dos Direitos Humanos, Paulo Vannuchi – paladinos de uma revisão do ardil maquiavélico – logo sufocada pela cúpula governista e por setores reacionários das Forças Armadas.
Qual seria, portanto, a melhor atitude a se tomar diante de uma injustiça? Qual o limite da autoridade de um governo sobre o poder da consciência individual? Enfim, qual o dever do cidadão justo perante um Estado iníquo? A parcimônia e a subserviência, companheiras do ressentimento e da vingança? Ou o senso de justiça, o de distribuir a cada qual o seu devido quinhão? Deixar de abrir os arquivos, ou mesmo de visitar os “porões” da ditadura, numa clara condescendência aos ditames de um regime que parece encontrar no atual certa conivência, não nos ensinará uma lição sobre o que realmente somos ou sobre o que queremos. Pertenço a uma geração que já respirava a insinuante brisa da abertura, mas que, por isso mesmo, deseja sempre revisitar a efeméride de nossos antepassados, de cobrar que as injustiças cometidas em tempos pregressos sejam enfim expurgadas. Afinal, é um desejo justo: o direito de memória. Somos, mesmo que não por força do destino, filhos de Antígona, condenados a uma herança maldita. Entre rostos evanescentes, muito embora visíveis, somos instados, a exemplo do príncipe Hamlet diante do fantasma de seu pai, a dar feição também aos seus sofrimentos. Se quisermos apontar soluções ao presente, temos o dever de encarar nossa história com todas as suas contradições e de enterrar nossos mortos, sob pena de nossos direitos serem apenas souvenires à exposição em um antiquário.
(Artigo publicado em setembro de 2008, em Palmas.)










Thiago H. Darin

Um comentário:

monica_orneles@hotmail.com disse...

Li este livro na minha adolescência, com outra visão, óbvio. Um clássico, muito boa a crítica.